O mistério
da JMJ explicado aos descrentes
(Rui Ramos, Observador) 4-8-23
As religiões tradicionais não são atavismo nem retrocesso,
mas tão parte do mundo de hoje e do mundo de amanhã como a ciência e a
tecnologia.
Vivemos numa época em que muita coisa está trocada. Os
crentes são hoje geralmente delicados e tolerantes. Parecem visitas numa casa
que não é deles. Para ver soberba e intolerância, é preciso ir para junto dos
descrentes. Aí, há muita gente que se porta como se fosse dona de tudo. É aí
que estão hoje os que não compreendem nem estão dispostos a aceitar nada.
Percebe-se porquê. Para os crentes, a providência divina é um mistério: as
coisas nem sempre têm de acontecer conforme esperam. O tipo de descrente de que
falo, pelo contrário, julga que sabe o sentido da história: não está preparado
para surpresas. Foi por isso que a JMJ o indignou tanto: nada, para ele, faz
sentido.
Não, não foi a colaboração do Estado num evento da Igreja
Católica que escandalizou os acólitos da descrença arrogante. É verdade que
questionaram essa colaboração, e até se puseram, muito neo-liberalmente, a
discutir orçamentos. Mas o problema não foi esse. O problema foi que a multidão
era grande, e que a gente era muito nova. Os descrentes não contavam com isso.
Desde pequenos, ensinaram-lhes que o cristianismo era um resquício da Idade
Média, prestes a acabar. Logo, nenhum evento cristão deveria atrair mais do que
umas poucas de velhas camponesas de regiões remotas. Mas eis que centenas de
milhares de jovens, com um ar muito contemporâneo, ocupam o centro de Lisboa
para ouvir missa e ver o Papa. Não é possível. Não vem no guião. Não pode estar
a acontecer.
Pobres descrentes arrogantes. De facto, são eles o resquício
de um tempo velho que talvez esteja a acabar. Esse tempo era o da superstição
do progresso. Os seus profetas, no século XIX, acreditaram que a ciência
moderna ia substituir as religiões tradicionais. O que fizeram foi atribuir às
teorias e hipóteses científicas a mesma certeza dogmática das antigas
revelações divinas. Não deram origem a boa ciência, mas inspiraram ideologias
pretensamente “científicas”, e que em nome da “ciência” reprimiram, prenderam e
massacraram. A intolerância ideológica do século XX, com os seus meios
industriais de morte, foi mais sanguinária do que qualquer intolerância
religiosa do passado.
A verdade é que religiões como o cristianismo não traduziam
simplesmente a ignorância de tempos antigos. As religiões eram, para os fiéis,
formas de saber viver e sobretudo de saber morrer, sistemas de cerimónias e
rituais destinados a fazer grupos e indivíduos transcender as suas existências.
Era isso que as religiões eram, e é isso que as religiões são, porque nada de
facto as substituiu nesse sentido, a não ser ideologias e superstições. Se os
descrentes percebessem isso, não estariam tão espantados com a JMJ, e talvez se
habituassem à ideia de que as religiões tradicionais não são atavismos nem
retrocessos, mas tão parte do mundo de hoje e de amanhã como a ciência e a
tecnologia.
Durante muito tempo, os Estados apropriaram-se das religiões
para legitimar a sujeição aos governos e a aceitação das hierarquias. Foram os
Estados que transformaram o cristianismo em opressão. As Inquisições ibéricas
do século XVI, de que ainda se culpa a Igreja Católica, funcionaram de facto
como instrumentos do Estado para obter uma homogeneidade confessional que o
Estado julgou indispensável a fim de assentar a ordem política. Isso acabou na
Europa entre os séculos XIX e XX, e quando acabou, as sociedades tornaram-se
plurais, mas o cristianismo não desapareceu. Deixou de ser imposto a todos, mas
passou a ser escolhido por muitos, como fé e “identidade”. As igrejas,
finalmente autónomas em relação ao Estado, puderam reconstituir-se como
congregações livres. Foi essa liberdade que passou por Lisboa.